segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
Rousseau, o Contrato Social e Paraisópolis
Por que a maioria das análises sobre a morte de nove jovens em Paraisópolis mirou apenas a Polícia Militar? Ouvi dezenas de "analistas" discorrendo sobre o episódio, ocorrido na semana passada, e nenhum deles mencionou o óbvio: quem são os organizadores dos "bailes" funk? Como eles se chamam? Onde eles moram? O "baile" seria o ganha-pão deles?
É estranho ninguém mencionar os responsáveis pelas mortes. Os organizadores são os responsáveis pelo ocorrido. Se eu promovo uma festa em um local inadequado, reúno milhares de pessoas, com objetivo de ganhar dinheiro, é claro que, se houver pânico, pessoas vão morrer.
Se eu for abrir um bar, que terá música ao vivo, tenho certeza que os documentos exigidos pela municipalidade vão ocupar uns dois metros de altura. Vou precisar de alvará de funcionamento, autorização do Corpo de Bombeiros, cópia do Imposto de Renda, IPTU do imóvel, cópia do contrato de locação, CNPJ...Só para citar alguns.
Agora, para organizar um evento na favela, não preciso de nada disso. É só ligar os alto-falantes e que "comece la fiesta". Paraisópolis parece não fazer parte do mundo legal. É um lugar à parte.
É estranho que, enquanto os corpos dos jovens estavam no chão, aguardando as viaturas do Instituto Médico Legal, os organizadores prosseguiam com a "festa". Que tipo de gente é essa que não para um evento, com gente morta, com cadáveres espalhados no chão, bem ao lado deles? Neste sábado, teve "festa" novamente. Os "responsáveis" fizeram um minuto de silêncio e, em seguida, botaram pra quebrar.
Quando é que a gente vai saber quem são esses organizadores? Quando eles serão penalizados pela Justiça? Sua responsabilidade é a mesma dos proprietários da Boate Kiss, em Santa Maria (RS). Quem faz festa em local inapropriado, com objetivo mercantilista (nada é grátis), coloca em risco a vida dos participantes.
As discussões sobre o ocorrido em Paraisópolis perdem o foco. Fala-se em racismo. Se os jovens fossem brancos, a polícia não teria partido para cima deles. Será que essa desgraça teria sido motivada por racismo? Não foi racismo. A polícia foi chamada por moradores, que não suportam mais ficar sem dormir três, quatro dias por semana, e interveio para acabar com a arruaça.
Você pode gostar de funk. Tem gosto pra tudo. Agora, ser obrigado a ouvir de sexta-feira a domingo funk em último volume é tortura. Se ao invés de funk, os "organizadores" colocassem A Primavera de Vivaldi no último volume, uma Primavera ensurdecedora, os reclamos seriam os mesmos.
A questão que se coloca é muito simples: por que o seu direito de se divertir vale mais que o meu direito de não ouvir a sua música? Eu tenho o direito de morar em Paraisópolis e querer ficar na cama, dormindo, de sexta-feira a domingo, sem ser incomodado pela sua festa. Em que momento a sua diversão suplantou o meu direito de não ser incomodado por você? Quando isso ocorreu e eu nem percebi?
Toda essa confusão remete a Jean-Jaques Rousseau (1712-1778). Quando escreveu o Contrato Social, Rousseau discutia um velho dilema: como preservar a liberdade natural do homem e garantir ao mesmo tempo a segurança e o bem-estar da vida em sociedade? Para Rousseau, a saída era simples: as pessoas deveriam optar por viver na democracia, submetendo-se às leis. Valeria a soberania da coletividade.
Em Paraisópolis, moram 80 mil pessoas. Parece que a maioria prefere viver em paz, sossegada, sem o pancadão de fim de semana. Por isso, eles pediram a intervenção da polícia. Então, meu caro, organizador do pancadão, o seu direito de incomodar a maioria com música no último volume vai contra o bem-estar da coletividade. Como garante o Contrato Social de Rousseau, você deve se submeter às leis e desligar o som ou ser preso por perturbação da ordem pública.
Mas os jovens, coitados dos jovens pobres, o que eles vão fazer sem os bailes? Onde eles vão se divertir?
Eu fui um jovem pobre também. Trabalhava em uma adega de bebidas e sonhava frequentar os bailes do Círculo Militar, na época o crème de la crème. Lá, tocavam as melhores bandas. As garotas eram deslumbrantes. O lugar era amplo, com decoração luxuosa. Um sonho de consumo.
Nunca pude frequentar os bailes do Círculo. Para nós, molecada pobre, havia os bailes de garagem. No sábado à noite, alguém arrumava uma vitrola. Espalhava cadeiras e mesas, onde antes havia um carro estacionado, e a gente dançava, de rosto colado, ao som de Johnny Rivers, Do you wanna dance?. O baile terminava antes da meia noite. Íamos na lanchonete mais próxima encerrar a noite, comer hambúrguer com queijo, regado a ketchup, novidade gastronômica naquela época, em 1969.
Paraisópolis, na realidade, é uma sucessão de erros. Está tudo errado. A área era particular e foi invadida. Ou seja, as pessoas não poderiam estar ali. O poder público, lento, foi incapaz de agir. Permitiu - mais uma vez - uma ocupação desordenada, caótica, que transformou aquela área de 10 quilômetros quadrados em um pesadelo urbano. É difícil trafegar pelas ruas. Faltam requisitos mínimos de cidadania. Imagine você ficar doente e a ambulância não conseguir chegar até a sua casa? E se pegar fogo, como já aconteceu outras vezes? Os carros dos bombeiros tinham dificuldade para chegar até o local do fogo, enquanto as chamas devoravam as casas. Em 2016, um incêndio destruiu uma centena de moradias ante o olhar impotente dos bombeiros.
Enquanto tudo isso acontece a prefeitura, sonolenta, move-se com a lentidão do cágado. Somente hoje foi feita uma reunião entre secretários municipais e lideranças da segunda maior favela da capital.
O que precisa se feito - e é urgente - me parece também muito óbvio. Aquelas 80 mil pessoas precisam ser cidadãs. O poder público - a começar pela prefeitura - precisa transformar o caos em área urbana habitável, com ruas largas, praças arborizadas, equipamentos públicos decentes.
- Ah, mas é tudo ilegal. Aquele terreno é particular. Os invasores precisam ser expulsos.
Isso deveria ter sido feito em 1970, quando meia dúzia de posseiros ocuparam um terreno particular. Agora, com 80 mil pessoas, fica difícil remanejar toda essa gente. A menos que a prefeitura tenha um plano urbanístico arrojado, mirabolante, capaz de utilizar aquelas centenas de prédios abandonados, no centro da cidade, em um projeto urbanístico do século 21.
Esquece! Isso nunca vai acontecer.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
Baile Funk de Paraisópolis é autoritário e perverso
A Favela de Paraisópolis é um lugar estranho. Algumas ruas levam a lugar algum. Devem ter sido imaginadas pelo arquiteto da miséria e do descalabro urbano. O tráfego de veículos percorre vielas sinuosas, estreitas e que, às vezes, são subitamente interrompidas por um caminhão de entregas que perdeu-se na tentativa de fazer uma conversão sem volta. Em frente ao comércio local, há caixotes de madeira empilhados e espalhados para ninguém estacionar. Carros, motos, carroças estão parados nos dois lados da rua estreita. Só por um milagre para passar incólume entre eles.
Sabe a Prefeitura de São Paulo? Essa instituição que tem fiscais que multam um puxadinho na Vila Madalena ou caem em cima daquele comerciante que precisa de um alvará? Então, essa Prefeitura não existe em Paraisópolis. Nada ali parece ter sido feito para funcionar. É tudo apertado, estreito, pobre, miserável, inviável. A Prefeitura não aparece por lá. Não manda fiscais. Não elabora um plano urbanístico. A Prefeitura é omissa, porque é muito mais fácil ser omisso do que participativo.
Talvez a única instituição que dê as caras em Paraisópolis, aquele vespeiro dominado pelo tráfico, seja a Polícia Militar. A missão da PM é complicada. Tenta ordenar a desordem. E a desordem, em Paraisópolis, é implacável.
Famosa pelo batidão, pelo pancadão, pelo tal do Baile Funk, os 80 mil moradores da Favela de Paraisópolis são reféns desse grupo que todas as semanas - repito todas as semanas - decreta estado de insônia totalitário. Sexta, sábado e domingo, os infelizes moradores desta favela da zona sul da capital estão proibidos de dormir. A ordem que lhes é dada - e tem de ser obedecida - é: "Vocês não vão dormir". Freddy Krueger ficaria sem ocupação.
Então, desesperados, reféns da miséria que os condenou àquele lugar remoto, medonho e abandonado, o que os pobres cidadãos fazem? Ligam para o 190, o telefone da Polícia Militar.
"Alô, por favor, eu não consigo dormir. Estou aqui na Favela de Paraisópolis. É um barulho insuportável. Trabalhei a semana toda. Vocês poderiam mandar uma viatura para cá?"
A PM aparece na favela e verifica que tem 5 mil, 10 mil, 30 mil pessoas, participando de uma festa pública. A PM tenta reprimir. É recebida com garrafadas, cusparadas, pedras e até chumbo grosso. A PM reage com energia, tenta pôr ordem na bagunça, mas a bagunça domina, impera. É a supremacia do caos.
Os "organizadores" do pancadão são anônimos. A gente não sabe quem são. Qual é o perfil desses promotores do infortúnio alheio? São jovens? Maduros? Pertencem a alguma facção criminosa? Quanto eles lucram com esses "bailes"? Seria essa a sua principal fonte de renda?
Não se sabe. Parece não haver trabalho de inteligência da polícia. É tudo cercado por uma neblina de incertezas. O que se tem certeza é que, no próximo final de semana, os 80 mil moradores da Favela de Paraisópolis, novamente, serão proibidos de descansar, porque o autoritarismo perverso dos "organizadores" fala mais alto do que a lei, a ordem, a Justiça.
O pancadão reúne todos os elementos do desrespeito legal. É uma festa sem alvará, sem licença, sem nada. Realiza-se ao ar livre, azucrinando a vida da vizinhança. Menores podem frequentá-la? Podem, sim. Entrem e fiquem à vontade. Ali, naquele canto, tem maconha, cocaína e ecstasy. Sirvam-se. Façam bom proveito. Depois, vocês farão sexo aqui no meio da rua, sem camisinha, para engravidar e daqui a alguns anos serão suas filhas e filhos que estarão aqui na bagunça.
Aqui, é um mundo à parte. O mundo lá fora não serve para nós. Por isso, criamos essa cidadela da putaria. Aqui vale tudo. Estupro de vulnerável? Vale. Uso de drogas lícitas e ilícitas e drogas que ainda serão inventadas? Vale.
Dizem que vem gente do interior de São Paulo, da Baixada Santista, de municípios próximos à capital para participar do pancadão. Na melhor das hipóteses, é uma garotada que quer se divertir e se entregar a prazeres baratos e possíveis.
Só que, sinto muito, não dá para isso ser feito no meio da rua. Não dá para a gente aceitar na boa o descalabro legal. Se a perturbação da ordem vale para mim, que moro em outro bairro, também deveria valer para o "organizador" do caos da Favela de Paraisópolis.
É hora do poder público fazer a sua parte. Deixar a omissão para trás e agir. A primeira tarefa a ser feita, é transformar a Favela de Paraisópolis em um bairro decente, com ruas largas, calçadas, praças, áreas verdes e tudo aquilo que qualquer cidadão paulistano teria direito. Ruas largas o suficiente para o tráfego do Corpo de Bombeiros e ambulâncias. Ruas largas o suficiente para a gente não sentir aquela sensação de claustrofobia, que deixa pessoas presas dentro de seus veículos, porque as ruas foram interditadas para o pancadão e só será permitido sair no outro dia, pela manhã, se os "organizadores" permitirem.
Morreram oito meninos e uma menina neste fim de semana. Todos os holofotes voltam-se para a Polícia Militar, que teria agido "fora das normas". E os "organizadores" agiram dentro das normas? Quem são? Onde se escondem? Quem é essa canalha anônima? Perguntas que espero ver respondidas nos próximos dias.
E os pais ou "responsáveis" agiram "dentro das normas"?
- Pai, mãe, vou sair.
- Onde você vai, filho?
- Vou para o pancadão, onde tem droga e sexo à vontade. O lugar é assediado pela Polícia Militar que, volta e meia, troca tiros com os bandidos.
- Ah, beleza, filho. Divirta-se. Não se esqueça de levar um casaquinho, que, mais tarde, pode esfriar.
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