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Reprodução: TV Record |
Esta imagem, de uma mulher sendo retirada do mar de lama, foi a que mais me impressionou. O helicóptero oscila a poucos centímetros do chão. A equipe de salvamento se esforça para agarrar a vítima e colocá-la no aparelho. Com o corpo besuntado de lama, ela escorrega. Volta a afundar. O bombeiro a agarra novamente. Puxa. Ela escorrega. Afunda. É igual àqueles pesadelos que a gente demora para acordar.
A primeira vez que estive em Brumadinho (MG) foi em 1982/83. Fiz uma pesquisa de campo para uma tese de mestrado. Tinha o nome pomposo de Televisão, Memória e Identidade Cultural: o caso de Piedade do Paraopeba, Palhano, Minas Gerais. A tese foi defendida em 1985 na Universidade Metodista de São Paulo.
Meu orientador na época foi o prof. dr. Luiz Roberto Alves. A ideia da pesquisa era realizar uma troca. O pesquisador não poderia apenas ir até lá, obter os dados e desaparecer. Era preciso participar ativamente da comunidade, discutir os problemas e propor soluções. A inspiração desse novo modelo de atuação era o livro de Carlos Rodrigues Brandão, Pesquisa participante.
Lembro que organizamos reuniões no povoado de Palhano, distrito de Piedade do Paraopeba. Tiramos uma pauta de reivindicações e fomos em comissão até a sede do município, que é a cidade de Brumadinho.
Era tudo muito novo na época. As autoridades não estavam acostumadas a receber a população, muito menos ouvir suas reivindicações. Era o estertor da Ditadura Militar.
O Vale do Paraopeba, milionário em recursos naturais, tratava muito mal sua população. Não havia escolas, transporte público, hospitais. As estradas eram precárias. As crianças desmaiavam de fome, durante as aulas. O desemprego imperava. Doentes morriam sem receber atendimento.
Entre outros problemas graves, desde aquela época, uma das principais preocupações dos moradores era com a preservação da Serra da Moeda. A mineração e a ocupação das encostas tirava o sono dos moradores. A água - até então abundante - começava a escassear.
Esses problemas eram crônicos. Arrastavam-se há décadas. Para fugir desse estado permanente de miserabilidade, meu amigo Silvestre Pedro da Silva deixou o Vale nos anos 60. Veio para São Paulo, onde viria se tornar um dos maiores fotógrafos das belezas naturais brasileiras, autor de várias obras de referência. Foi ele quem me apresentou Brumadinho e o Vale do Paraopeba.
Em 2008, revi o professor Luiz Roberto Alves. Ele me convidou para realizar um novo projeto de pesquisa. Sugeri que seria interessante retornar ao Vale do Paraopeba e verificar quais mudanças tinham ocorrido, depois de 25 anos. Ele assentiu e partimos para a ação.
Entre 2009 e 2010, fiz nova coleta de dados na região. Verifiquei que, com a volta da democracia e os governos democráticos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a situação da região havia mudado para melhor. Muito melhor...
Sem a estagnação da Ditadura Militar, em poucos anos, estradas foram asfaltadas, escolas construídas, surgimento de postos de saúde e transporte público regular haviam contribuído sensivelmente para a melhoria da qualidade de vida. Havia generosa oferta de empregos. "Aqui, só não trabalha quem não quer", me confidenciava um morador.
Nos finais de semana, o Vale era cortado por cerca de 2 mil carros. Eram pessoas que viviam em Belo Horizonte e buscavam a região para espairecer. Eles almoçavam nos restaurantes do Vale e muitos iam em direção a Inhotim.
Nas cercanias de Brumadinho, foi montado o Jardim Botânico e Museu de Arte Contemporânea Inhotim, com pelo menos 500 obras de arte de artistas plásticos brasileiros e internacionais.
Seu idealizador – Bernardo Melo Paz – chamado de “Fitzcarraldo brasileiro”, em uma reportagem do jornal Valor -, ergueu em uma área majestosa de 45 hectares um museu-parque gigantesco, com dezenas de esculturas, coleções botânicas, em meio a cinco lagos, alamedas monumentais e reservas de Mata Atlântica.
Quando estive no Museu Inhotim, havia instalações de Cildo Meireles, Adriana Varejão, Chris Burden e Janet Cardiff, entre outros. O conjunto das obras a céu aberto, as galerias impecáveis e repletas da magia de obras de arte impressionantes, um número – às vezes – até excessivo de guias e pessoal de apoio, a profusão de espécies vegetais raras, todos esses elementos, essas atrações, haviam atraído milhares de visitantes ao Museu Inhotim.
A maioria saía de Belo Horizonte, percorria a BR 040 (Belo Horizonte-Rio de Janeiro), desviava em direção ao Vale do Paraopeba, para apreciar a paisagem da região, cruzavam Palhano e outros povoados e chegavam a Brumadinho por estradas vicinais asfaltadas, pouco movimentadas.
O criador do Inhotim - Bernardo Paz - é irmão de Cristiano Paz, citado no imbróglio que a imprensa qualificou de “escândalo do Valerioduto”, referência ao empresário Marcos Valério, principal personagem do “mensalão mineiro”, conforme a mídia tratou o caso em 2004.
O jornalista Jotabê Medeiros traçou o perfil de Bernardo Paz, para uma reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Intitulada “o maior mecenas da arte brasileira”, a matéria destacava o investimento de US$ 240 milhões (R$ 408 milhões) para criar o Instituto Inhotim. Além de mecenas, Paz usou mão de obra local e gerou dezenas de empregos.
A história que os populares contam sobre o Museu Inhotim é que Bernardo Paz teria se arrependido dos danos ambientais provocados pelas suas mineradoras e, por isso, a construção daquela área preservada e recheada de obras de arte seria uma forma de restituir à população aquilo que ele havia tirado ao deteriorar a qualidade de vida da região.
Se o empresário Bernardo Paz arrependeu-se, será difícil saber. O fato é que as mineradoras continuavam atuando no Vale do Paraopeba. A ação mineradora trazia tensão e preocupação entre os moradores.
Na ocasião, conversei com a artesã Regina Rocha de Oliveira, nascida em Palhano. Artista independente, ela vivia em seu ateliê, produzindo peças em cerâmica e dando aulas para crianças, filhos de moradores dos condomínios. Ela atuava junto a um grupo preservacionista. Em 2010, havia entregado uma escultura ao então governador Aécio Neves, reivindicando o tombamento da serra. Ela estava preocupada com o início da mineração na área de montanha, próxima ao Vale:
"O processo de desenvolvimento precisa explorar o turismo ecológico. A região é o pulmão de Belo Horizonte. Era preciso investir na construção de parques, preservar o mato a água. O minério retirado na serra não é de boa qualidade. Daqui a alguns anos, a água vai valer muito mais que o minério. Por isso, precisamos tombar a serra e impedir a mineração", ela dizia na época.
A artesã Regina havia aprendido seu ofício com a ceramista japonesa Toshiko Ishii (1911-2007), radicada em Palhano. Ela dizia que muitos moradores estavam indo embora, fugindo da ação das mineradoras:
“Os mais espertos sabem que a mineração está chegando, vão começar as explosões, os desmoronamentos de terra, por isso começaram a vender as casas e estão indo embora. Os mais novos, que não sabem o que espera, estão chegando.”
Um comerciante, que entrevistei, se mostrava cético em relação ao possível tombamento da serra:
“São 800 mil toneladas de minério que estão lá em cima. Dizem que tem urânio, cristal, ouro e até diamante. Quem vai deter esse pessoal das mineradoras? Você acha que o governo vai deixar tombar?”
Em 2017, Bernardo Paz foi condenado a nove anos de prisão por lavagem de dinheiro e, pouco depois, pegou mais cinco anos de cana por evasão fiscal. No livro Brazillionaires, o repórter Alex Cuadros revelou que "a fortuna de Bernardo Paz foi construída à base de trabalho infantil e escravo, desmatamento ilegal e grilagem de terras", conforme reportagem publicada pelo The Intercept Brasil.
Na sexta-feira, dia 25, uma barragem se rompeu e aconteceu aquilo que os moradores mais temiam e previam. A lama desceu com força e foi soterrando tudo que encontrava pela frente. Matou pessoas, matou animais, destruiu propriedades, sonhos e esperanças.
Hoje, chega a informação que cinco pessoas (funcionários da Vale e engenheiros que atestaram a segurança de barragem) foram presas. Faltou encarcerar o principal responsável: o presidente da Vale do Rio Doce, Fabio Schvartsman, que concedeu uma entrevista coletiva constrangedora. Parecia Glória Pires comentando a cerimônia do Oscar: "Não sei, não conheço, não posso opinar".
Não sei se a artesã Regina Rocha de Oliveira sobreviveu ao desastre ambiental. Mas faço votos que sua reivindicação de tombar a Serra e impedir a mineração seja agora ouvida e transformada em realidade. Essa é uma dívida que as autoridades têm para com a população local e que precisa ser paga.
Vale a pena repetir o que ela disse: "Daqui a alguns anos, a água vai valer muito mais que o minério. Por isso, precisamos tombar a serra e impedir a mineração".
Que tal começar hoje, amigos ambientalistas, um movimento pelo tombamento da Serra, expulsando as mineradores predatórias? Hoje! Sem deixar para amanhã.