quarta-feira, 16 de janeiro de 2019
Histórias da cozinha
Quando era criança, gostava de ficar na cozinha. Via minha avó preparar o almoço. Concentrada, ela circulava ao redor do fogão. O arroz chiava, quando adicionava a água. Tomates cozidos eram passados na peneira. O vapor subia em ondas. O molho de tomate ficava horas no fogo, acompanhado de suculentas bracholas. O molho desprendia um cheiro inesquecível.
O nhoque era feito com farinha, batatas, ovos e temperos. Com muito zelo e carinho, ela fatiava a massa e, em seguida, passava os nhoques pelo garfo para dar aquela forma riscada, característica do nhoque italiano. Os bifes pegavam fogo, enquanto eram fritos. Via as labaredas elevando-se sobre as carnes, para depois se apagarem como por magia. A cozinha da minha avó parecia um laboratório alquimista.
Uma vez, minha avó recebeu a visita de um parente longínquo português. Era um tipo simpático, de cabelo branco, vestido com um terno claro impecável. Ele vinha almoçar com a gente. Minha avó passou a manhã na cozinha e ao meio dia levou para a mesa uma forma imensa, repleta de bacalhau com batatas à Gomes e Sá. O cheiro que vinha do prato enlouqueceria um animal faminto. Meu avô serviu um vinho verde português, enchendo os copos até a boca (inclusive das crianças).
Lembro do parente português, olhando a comida, o copo de vinho, provando um bocado. Mais um pouco... A família em volta, na expectativa do que ele iria falar. Ele baixou a cabeça, emocionado, e começou a chorar. Talvez de saudade, de prazer, de alegria. Talvez tudo isso junto.
Menino não era bem-vindo na cozinha. "Lugar de mulher". Era um clandestino por ali. Quando começava a fazer muitas perguntas; "Por que a senhora está descascando isso?", "Que tempero é esse?"; era literalmente expulso da cozinha. "Vai brincar, menino, para de encher".
A cozinha funcionava como um espaço de poder das mulheres. Um lugar onde os homens passavam como visitantes breves, mas não permaneciam.
Meu pai não admitia que homem lavasse prato, a não ser é claro se fosse cumim e trabalhasse em restaurante. Depois de casado, meus pais vieram uma noite jantar conosco. Terminada a refeição, levei os pratos para a cozinha e comecei a lavar a louça. Meu pai olhou aquilo horrorizado. "Isso é coisa de mulher. Deixa os pratos aí", chamando minha mãe para dar um apoio logístico.
Comecei a me apossar da cozinha aos poucos. Tinha muito interesse na preparação dos pratos que eram servidos na ceia de Natal. Pato com laranja, presunto tender, lombo assado, peru recheado, arroz com passas...Minha tia, que sucedeu minha avó na cozinha, tinha espírito didático e, em uma véspera de Natal, concordou em me passar as receitas, gravando um vídeo. Eu tinha comprado uma filmadora e fiz a filmagem de toda a preparação da ceia, tendo minha tia como protagonista.
Com o tempo, fui reproduzindo as receitas familiares que me traziam mais lembranças. Com muito custo, depois de inúmeras tentativas e fracassos, consegui elaborar um molho de tomate com bracholas, que hoje, certamente, teria o selo de aprovação da minha avó.
Nhoque e outras massas não são mais mistério. Ganhei até uma máquina para fazer macarrão, veja você que avanço tecnológico. Os antepastos, que eram o produto de excelência de minha mãe, como pimentões e berinjelas em conserva, também foram reproduzidos com sucesso.
A cozinha é um lugar onde me sinto em paz. Gosto de me concentrar na produção dos pratos. O maior prêmio de um cozinheiro é quando alguém chega perto e diz: "Que cheiro delicioso! O que você está cozinhando?".
Cozinhar é um ato fraterno. Você pega a matéria-prima que é um monte de farinha, ovos, batatas cozidas e transforma isso em um negócio delicado, chamado nhoque. São duas a três horas de preparação intensa, com um só objetivo: fazer com que as pessoas sintam prazer.
Em Piedade do Paraopeba, Minas Gerais, onde fiz uma pesquisa de campo, no início dos anos 80, lembro que a cozinha não era uma espaço restrito às mulheres, um centro de poder feminino. A cozinha mineira, com aquele tradicional fogão a lenha, que desprendia odores deliciosos, durante o cozimento, era um ponto de inclusão. Ali, homens e mulheres se reuniam. Tomavam café. Faziam suas refeições. Trocavam informações. Contavam histórias de santos e assombrações.
A preparação da comida é ato altruístico, de desprendimento. Enquanto o pessoal se diverte na piscina, dando um passeio ou lendo um livro, o cozinheiro, em sua atuação solitária, prepara a refeição. Ele não pode falhar. Assado queimado, macarrão "molhado" fora do ponto, molho aguado são imperdoáveis.
A comida caseira tem de ser cheirosa. Deve abrir o apetite. Precisa estar bem apresentada, decorada, bem feita. Quando o cozinheiro erra, ele elimina o prato. É inadmissível levar para a mesa uma refeição que não deu certo. Ele não pode dividir seu fracasso.
O termo refeição caseira não me parece apropriado. Caseiro lembra algo feito de forma precária. Uma gambiarra. O melhor termo é aquele utilizado pelos americanos, que chamam a refeição caseira de comfort food.
Essa refeição feita em casa remete às minhas lembranças afetivas de conforto e proteção. Por isso, o termo americano é adequado. Naquela época, era bom saber que alguém ficava horas e horas ao redor de um fogão para lhe alimentar, matar a sua fome de comida e de carinho. Ainda que, depois de uma breve trégua, fosse expulso daquele espaço mágico da minha avó alquimista.
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