segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Como é viver na cadeia


No exterior, um amigo que vivia em Brighton (Inglaterra) costumava me perguntar: "Quando você vai voltar para a cadeia?". A cadeia, no caso, era o Brasil. Corria o ano de 1982. Eu tinha me autoexilado e trabalhava como general help em um bed & breakfast. General help era o sujeito que fazia um pouco de tudo no hotel. Chegava às 7h. Ajudava a preparar o café da manhã. Arrumava as camas. Passava aspirador. Fazia as reservas dos hóspedes. Levava as malas pra cima e pra baixo. Às 13h, pontualmente, descia ao subsolo, onde tomava uma pint morna com o dono. Saía do trabalho e ia almoçar um sanduíche com a minha mulher no parque, se o tempo estivesse bom. Às 14h, entrava na escola. À noite, no apartamento que havíamos alugado, assistia à programação da BBC, sempre excepcional. Era uma vida gostosa a que eu levava no exílio. Era estranho, mas eu vivia melhor como faxineiro na Inglaterra do que como jornalista no Brasil. Não era só o salário que era melhor. Na época, sentia uma sensação de liberdade indescritível por ter saído de um país sob jugo de uma Ditadura Militar.


Terminado o autoexílio, voltei para a "cadeia". Em outros anos, tive a oportunidade de viver novamente no exterior, mas sempre retornei para a "cadeia", expressão que nunca me saiu da cabeça.

Fazendo um retrospecto, não me lembro de uma época boa, passada no Brasil. Às vezes, você está feliz, de bem com a vida, sorridente e é só andar na rua para a realidade brutal acabar com seu bom humor. O cordão de miséria envolve nossas cidades, envolve nossas ruas, nossos pescoços. A miséria não é somente opressora, ela é dominadora. Mesmo nos governos bem-sucedidos de FHC (primeiro mandato) e Lula (os dois mandatos), a miséria continuou prevalecendo, embora tenha sido minimizada.

Como jornalista, a serviço da FT, ganhava um salário ridículo, mas pelo menos os proprietários do grupo jornalístico conseguiam manter uma conta polpuda na Suíça, fiquei sabendo anos mais tarde, pós-escândalo do HSBC. Sorte deles, azar o meu que nunca tive conta na Suíça e nem polpuda.

Não é só a miséria da exploração do trabalhador que nos aflige. Existem outras misérias, maiores e mais robustas. Começa nas periferias das cidades. São bairros novos que surgem de um dia para o outro, sem planejamento, sem infraestrutura. As casas vão se amontoando, o esgoto circulando pelas vielas, a criançada crescendo no meio do caos urbano, sem lazer, sem perspectiva. O poder público se omite - como sempre - e a criminalidade impera.

Tem a miséria crônica das prefeituras que nunca cumprem com seus deveres. Enquanto você paga o IPTU e as multas de trânsito, as prefeituras obrigam você a trafegar por ruas esburacadas, escuras, a caminhar por calçadas impróprias (pobre do deficiente que anda de cadeira de rodas). As prefeituras brasileiras não fazem o elementar, que é a zeladoria. Tapem os buracos pelo menos já que não conseguem fazer o resto, bando de incompetentes!

Tem a miséria da educação...Essa é imperdoável. Outro dia, fui em uma escola estadual de um bairro periférico e me vi cercado de grades. O portões eram fechados com cadeados e correntes. Falei para a diretora: "Isso aqui parece uma cadeia e não uma escola". Ela me respondeu: "É para eles irem se acostumando. A maioria vai ser presa mesmo".

Agora, vivemos em um momento de miséria extrema. Ela é purgativa. Temos um presidente que é apoiado pela esposa dele, pelos ministros e o Congresso e por um jornalista. São os 3%, indicados pela pesquisa da CNI/Ibope. Temos milhares de políticos que foram eleitos a dedo pelo poder econômico e - portanto, descobrimos do alto de nossa imensa ingenuidade - não nos representam.

Como naquele livro famoso de Kafka, existe um processo em curso, que parece longe do final. Quem circula pelas ruas - e não a bordo de carros blindados ou de helicópteros - topa diariamente com a miséria dos 13 milhões de sem-emprego, com os zumbis da Cracolândia, com os pedintes e miseráveis de sempre limpando os para-brisas nos faróis.

A miséria tem o som ensurdecedor do funk, que é ditatorial e opressivo, porque obriga você a ouvi-lo, mesmo contra a sua vontade. É uma miséria totalitária, difusa, capilar, que coloca como preferido na lista de prováveis candidatos um político que defende torturadores.

Nesse país, que se diz laico, o dinheiro em circulação estabelece que "Deus seja louvado". A TV aberta é um show de horrores, aceito passivamente pelo telespectador embrutecido, molenga, apático, sonolento, embriagado de suas próprias limitações intelectuais.

Lembro da polêmica sobre uma perfomance em um museu. Um artista peladão atraiu ondas de ódio, que espumavam repressão e censura. Esse pessoal não está preocupado com os bairros da periferia, ocupados pela desgraça dos sem-dinheiro. Está pouco se lixando para as escolas cercadas de grades por todos os lados e para os professores agredidos e humilhados. Não dá a mínima para o trabalhador explorado - os 99% que sustentam o 1%. Não, nada disso! Eles querem proibir o pinto. O pinto à mostra é hoje o maior problema do Brasil. E naquele restaurante onde o pinto e a pinta foram jantar...Adivinhe quem pagou a conta? A pinta. O pinto estava duro.        


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