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| O verde e branco palmeirense sempre predominou na decoração |
Meu avô era zelador de um prédio que ficava na rua Senador Feijó, a dois passos da lendária praça da Sé, marco zero de São Paulo, de onde se marcam todas as distâncias. Nos anos 60, a gente podia sair à noite, dar uma volta pelo centro paulistano, sem voltar pra casa com história de violência para contar. Era assim: saíamos meu pai, minha mãe, minha irmã, minha tia e eu no sábado à noite (às vezes, muito raramente, o avô e a avó acompanhavam - morávamos todos juntos em um apartamento imenso). O prédio era comercial e estava completamente vazio àquele horário. Descíamos pelo elevador, que não era automático. Era necessário guiar o maquinário, mexendo na alavanca e freando quando chegava no andar desejado. Eu tinha aprendido com um ascensorista a mexer naquele comando desafiante e conseguia parar direitinho, sem deixar degrau. A porta do prédio tinha uns três metros de altura e era de ferro. Para abri-la, além de vários movimentos certeiros com a chave, era necessário ter força bruta para conseguir movê-la. Lá fora, o ar era habitualmente gelado e volta e meia caía uma garoa. Saíamos da rua Senador Feijó, entrávamos à esquerda na rua Cristóvão Colombo, cruzávamos a Riachuelo e descíamos pelo viaduto Brigadeiro Luís Antônio. Como a rua Cristóvão Colombo devia ter apenas uns 50 metros, alguém da família lembrava que dar o nome do grande navegador genovês para uma rua minúscula como aquela era um desaforo. Em cima do viaduto, olhávamos lá para baixo, onde havia uma rua pouco movimentada. Meu pai alertava: "Eles vão construir uma avenida que vai se chamar 23 de Maio, para ligar o centro ao aeroporto de Congonhas".
Quando terminava o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, bem à direita a gente via a rua Asdrúbal do Nascimento, que me enchia de apreensão, porque lá era a sede do Juizado de Menores (pré-Febem, muito pré-Fundação Casa). "Se você continuar sendo malcriado, vai parar ali", me ameaçavam. Virávamos à direita na rua Maria Paula e prosseguíamos por uns 200 metros até um sobrado, pintado de verde. Na porta do número 194, a gente lia: "Jardim de Napoli". Ao lado, havia um edifício sombrio, marrom escuro. Tinha a placa "Federação Espírita do Estado de São Paulo". Minha mãe me dizia: "Nesse lugar, os espíritos descem e conversam com as pessoas", o que me dava uma medo desgraçado.
A primeira vez que entrei na cantina Jardim de Napoli foi também a primeira vez que entrei em um restaurante, tipicamente italiano. As toalhas eram quadriculadas nas cores verde e branco. Havia garrafas de vinho chianti, envoltas por uma armação de palha, penduradas sobre nossas cabeças. De vez em quando, um garçom pegava uma delas e levava para uma mesa. O cheiro da comida era devastador. Dava vontade de chorar. Na época, o famoso polpetone ainda não tinha sido inventado. Na entrada, junto da caixa registradora, ficava um rapaz de uns vinte e poucos anos. Meu pai ia até ele e o cumprimentava. Ele parecia genuinamente feliz de ver a gente. "É o Toninho Buonerba", meu pai dizia, "é filho do senhor Francesco". Aparecia um garçom calvo, atencioso, que se chamava "seu Mário". Ele conhecia meu pai e os dois trocavam palavras em italiano. O Jardim de Napoli, então, era um salão, com algumas mesas, quase sempre ocupadas por famílias e casais de gente modesta, como nós.
Antes do prato principal, comíamos o que eles chamavam de "antipasti". Era um festival de sabores, envolvendo berinjelas e cogumelos em conserva, azeitonas frescas, envoltas em muito azeite. Pegávamos o pão italiano, cortado em fatias, e devorávamos o tal do "antipasti". Em seguida, chegavam as pizzas: de mozarela, de aliche, calabresa, portuguesa. De sobremesa, era a vez dos cannolis de chocolate e creme. Minha mãe comia sempre pastiera di grano, uma torta de ricota com grãos de trigo.
Encerrado o jantar, fazíamos o caminho de volta, sem qualquer ocorrência. Ninguém vinha falar com a gente, pedir dinheiro, tentar roubar o celular, mesmo porque faltavam uns quarenta anos para inventarem o celular. Estávamos satisfeitos, felizes da vida com aquele jantar delicioso. E era gostoso andar à noite por São Paulo, com a família reunida.
Depois de adulto, voltei a frequentar o Jardim de Napoli. Com a deterioração da zona central, o restaurante tinha feito as malas e se mudado para a rua Martinico Prado, 463. Certa noite, eu, a esposa e a nossa filha, com uns três anos de idade, fomos lá para jantar. Na entrada, repeti o gesto do meu pai e dei um abraço apertado em Toninho Buonerba. Cumprimentei também efusivamente os garçons, que nos conheciam. Olhando com atenção ao redor, reparei que o público havia mudado. Era um pessoal mais endinheirado, que minha mãe chamava de "gente com o nariz em pé". Era época de festas juninas e nossa filha estava vestida a caráter, de caipirinha, com um vestido floral verde e branco, que combinava com as toalhas, cabelo com trancinhas, linda, uma graça. Nossa filha era a menina mais comportada do planeta Terra. Falava sem cometer erros de português e nunca tinha nos deixado embaraçados em público. Nessa noite, no entanto, a menina estava com o diabo no corpo. Ela chorava, gritava, abria um berreiro, enfiava a mão no copo cheio de refrigerante, atirava os talheres no chão. E a gente morrendo de vergonha, diante dos olhares dos ricos.
Voltamos, é claro, várias vezes ao Jardim de Napoli e a qualidade da comida nunca se perdeu. Era impressionante: a mesma berinjela que eu comia na infância tinha o mesmo sabor, décadas depois. A pizza igualmente sempre com a mesma textura e sabor. E havia uma novidade no cardápio: a partir dos anos 70, Toninho Buonerba tinha inventado o polpetone, um bolo de carne, recheado de mozarela e envolto em molho de tomates. O prato tornou o Jardim de Napoli conhecido nos meios gastronômicos e fez a clientela crescer cada vez mais. Com o tempo, se a gente chegasse depois das 19 horas, em um sábado à noite, era obrigado a suportar longa fila de espera.
Toninho Buonerba morreu em 2018 e deixou um grande legado para a culinária de origem italiana em São Paulo. Deixei de frequentar o Jardim de Napoli, quando mudei para a Granja Viana, no final dos anos 90. Ficou muito longe, fora de mão.
Alguns restaurantes têm essa particularidade: parece que fazem parte da nossa família. Era bom entrar no Jardim de Napoli e encontrar sempre os mesmos garçons e o Toninho Buonerba, no mesmo lugar, ali na entrada, na recepção. Bons restaurantes trazem boas lembranças, não só gastronômicas, mas de afeto, de fazer a gente se sentir bem-vindo. Por isso, o Jardim de Napoli terá sempre um lugar garantido nas minhas melhores e mais prazerosas lembranças. Pena que saiu da rua Maria Paula, pena que a gente não possa mais caminhar à noite por São Paulo, saindo da rua Senador Feijó e caminhando a pé até a Maria Paula. Perdemos o direito e ir e vir e não sabemos se um dia iremos recuperá-lo.
