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Teatro João Caetano, localizado na rua Borges Lagoa |
Eram vários os tipos exóticos que viviam na Vila Clementino, onde passei a infância e adolescência. Morava próximo ao Hospital São Paulo, um prédio marrom, feio, decrépito, onde trabalhava uma médica. Essa senhora de beleza modesta, avental branco e estetoscópio pendente no pescoço, estacionava o carro, diariamente, na rua Napoleão de Barros. Parava o carro e seguia para o trabalho no hospital.
Na volta, assim que ela apontava na esquina, com a
pontualidade de um relógio digital, surgia na outra esquina um senhor, com a barba
por fazer, desgrenhado, sapatos rotos, um paletó escuro e manchado, a
transpiração indicando uma gradação alcoólica que o impediria de pilotar um
skate. Às vezes, estava acompanhado por um amigo, também morador de rua, também
ébrio, que lhe aconselhava: “É agora. Não perde a oportunidade. Vai lá”.
O aspirante a Romeu ia se aproximar dela, mas algo o
impedia de seguir adiante. Ele parava. Ficava indeciso. Ia, mas não ia. Andava
mais um pouco. Criava coragem, mas não. Até ir embora, enquanto a médica
prosseguia seu caminho até o carro.
Era uma paixão platônica, amor inalcançável, entre o
bebum, que passava o dia bebendo com os companheiros atrás do muro do hospital;
e a médica, sonho impossível.
O pinguço nunca conversou com a médica. Mas todos os
dias tentava se aproximar dela, sem ter coragem para isso.
“Ele é apaixonado, coitado”, diziam as donas de casa,
enquanto conversavam, encostadas nos portões dos sobrados, equilibrando os
tamancos na sola do pé, testemunhando a tentativa e o fracasso cotidiano do
ébrio mais famoso naquele quarteirão.
Outro personagem de misteriosa sedução era um senhor,
rodado nos seus sessenta anos, cabelos ralos e brancos, barba professoral
igualmente branca. Durante o dia, ele não dava as caras. Para encontrá-lo, era
necessário caminhar pela rua Botucatu, depois das 23 horas. De camiseta branca
t-shirt, curta demais para tampar a proeminência da barriga, calça de algodão
de linho branco dobrada na altura do tornozelo, chinelo franciscano, ele
caminhava errático pela rua. Ao seu lado, a fiel companhia de um galo garnisé
branco e crista vermelha.
Certa vez, tentei falar com ele, mas o senhor do galo
da madrugada, pôs a ave embaixo do braço e saiu correndo. Não gostava de gente.
Só do galo de estimação.
Havia três irmãos, que moravam na rua Borges Lagoa,
nas proximidades da rua Botucatu. Eram vizinhos do homem do garnisé.
Os três “batiam mal”, como se dizia, na época. A gente
estava em casa, tranquilo, jantando e de repente alguém gritava na rua. Eram
vários gritos e xingamentos, destinados a ninguém em particular. Poderia ser o
Cinton. Poderia ser o Dalton ou o Cinfrânio.
Quando a gente saía na rua, para ver o que estava
acontecendo, topava com um deles, virado para um poste, blasfemando, gritando
em altos brados.
Ao ser confrontado, o Dalton costumava dizer:
“Nós somos três irmão; tudo louco e confusão”.
Na rua Borges Lagoa, ficava o Teatro João Caetano, projetado pelo arquiteto Roberto Tibau. O mesmo que construiu os teatros Artur Azevedo e Paulo Eiró. Os moradores pouco frequentavam o João Caetano. Certa vez, apareceu um ilusionista por lá e um garoto vizinho foi hipnotizado no palco. Virou uma celebridade. Os moleques queriam saber como era o "lado de lá", como se ele tivesse morrido e pudesse nos relatar uma experiência post mortem inédita..
A minha professora particular de matemática era apelidada de “ligeirinho”, porque andava em alta velocidade pelo bairro. Sempre depressa. Era magra, baixinha e trazia uma bolsa pequena presa com toda vontade junto ao corpo. Ela era muito respeitada no bairro, por sua colaboração com a Revolução de 1932. Entre outros feitos, ela costurava os uniformes dos voluntários paulistas.
A mãe da professora era uma senhora italiana, com
pelos encravados no rosto e bigode proeminente, cabelo crespo embranquecido e
amarfanhado no alto da cabeça. A casa delas cheirava a cebola frita. Acredito
que era o principal prato da família, pois ambas transpiravam cebola. Na sala,
sempre escura, abafada, havia um cãozinho empalhado e quadros de figuras
fantasmagóricas pela parede.
À noite, elas assistiam novelas. A repressão sobre as
filhas da professora era medieval. Cenas de beijo, por exemplo, eram
proibitivas.
Sempre que o galã pegava a mocinha nos braços e ia
tacar-lhe um beijo, a professora armava-se de uma almofada. Saía correndo em
direção à TV e tapava a tela com a almofada. Só depois que o beijo e as
carícias tinham terminado, ela suspendia a almofada. Era um coitus interruptus
de beijo.
O bairro tinha chácaras. Os proprietários eram imigrantes portugueses. Vendiam verduras frescas, cultivadas sem agrotóxicos, porque, na época, ninguém sabia o que era agrotóxico. As chácaras eram rodeadas por cercas vivas de amoreiras. A molecada enchia a cara de amoras pretas, que deixavam as mãos e as bocas tingidas de vermelho.
Quando as montadoras chegaram ao ABC, no início dos anos 1960, o bairro começou a ganhar novos moradores. Com o preço dos imóveis em alta, as chácaras foram abandonadas.
Para os moleques foi uma notícia boa: tínhamos agora vários campinhos de futebol. De vez em quando, um moleque despencava em um dos poços, espalhados pelos terrenos das antigas chácaras, e era um trabalho danado tirar o infeliz ali de dentro.
Nos anos 1970, chegou o metrô e a Vila Clementino, de ruas tranquilas e calçadas com macadames, perdeu seu charme. Vieram os prédios, as construções intermináveis, a descaracterização do bairro. Um prédio imenso foi construído, atrás da casa dos meus pais, bloqueando o nascer do sol e a lua cheia.
A perda gradual da qualidade de vida do bairro me deixou sem saudades. Nada daquela época me traz recordações felizes, do tipo Casimiro de Abreu - "que saudades que tenho da minha infância querida...". A especulação imobiliária venceu. Nos deixou atordoados entre os escombros do que era um bairro bom de se viver, transformado em um amontoado de construções sufocantes, de trânsito insuportável.
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