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Imagem mostra conjunto de casas cercado por prédios no Campo Belo |
Como o personagem "Dirty Harry", o capital não perdoa: atropela e mata quem fica na frente. São Paulo continua sob o domínio perverso do capitalismo imobiliário. É a verticalização do caos. Mais prédios, mais carros, mais gente, mais cabos e postes, mais redes de esgoto e de água, mais asfalto, mais cimento, mais andaimes, mais obras e mais, mais, mais e mais.
Não sei por que (ou talvez saiba), nos anos 1980, era quase impossível emplacar uma reportagem sobre as desgraças da verticalização enlouquecida. Não era só na imprensa "tradicional". Também na alternativa havia restrições. Lembro quando era repórter de um jornal chamado "Em Tempo" propus a pauta da verticalização para um editor e ele negou. Disse que havia mesmo necessidade de se construir prédios, "senão as pessoas não vão ter onde morar".
Parece um argumento lógico, ocorre que a construção de um prédio gigantesco, ao lado de sobrados ou de residências térreas, provoca um colapso na qualidade de vida, transformando o que era bom em algo insuportável.
Entre 1982 e 1984, fiz uma pesquisa em um bairro. As narrativas que ouvi eram desesperadoras:
"Aconteceu o seguinte: caiu um elevador em cima do meu telhado. Um elevador cheio de tijolos. Caiu e arrebentou todas as telhas, as vigas, o forro, tudo. Nós não morremos aqui pela graça de Deus. Quer dizer, eu não morri, porque a minha senhora estava boa e ficou doente de tanto desgosto. Foi essa obra que acabou com a vida dela. Ela gostava muito da casa e era um desgosto para ela ver cair cimento, pedaços de madeira, tudo quanto era porcaria em cima da gente. Os caminhões que carregavam cimento afundaram toda a minha calçada (...) Um dia, caiu um guindaste no meu quintal. Não aguentei. Fui na prefeitura e veio um fiscal aqui. Olhou, olhou e me mandou arrumar um advogado".
Outro entrevistado reclamava da violência dos incorporadores:
"Esquecem que nós temos direitos adquiridos, porque já moramos aqui há anos. (...) Eles jogam telhas, ferramentas, madeiras, sacos de cimento. Caiu essa mercadoria toda aqui no meu quintal. Nós tínhamos uma galeria de servidão de água e eles simplesmente cortaram a saída do coletor e o nosso quintal, depois da chuva, encheu que ficou parecendo uma piscina. Tivemos que gastar uma fortuna para desviar essa água para outro lugar. Eles trabalhavam direto, de segunda a segunda, de noite, de madrugada, o tempo todo. Reclamei. Chamei a polícia por causa do barulho. Vieram aqui. Foi uma confabulação. E no fim foram tocando, sem respeitar a lei do silêncio, coisa nenhuma desse tipo".
Ednam Leme da Costa Júnior apresentou um trabalho sobre a especulação imobiliária na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), intitulado "A produção da arquitetura de especulação imobiliária". Ele escreve:
"O critério da implantação dos edifícios de apartamentos é o da expulsão das residências. Áreas residenciais de nível econômico relativamente elevado e próximos aos setores de serviço, que conseguiram o seu desenvolvimento uma infraestrutura bastante completa, são invadidas e transformadas, em curto espaço de tempo. O objetivo da invasão é o lucro imediato".
O bairro residencial transforma-se em um lugar repleto de tensão e desassossego, conforme uma moradora percebia:
"Trânsito engarrafado, poluição, pessoas que estacionam o carro na frente do meu portão e trancam o carro sem a menor cerimônia, como se a guia rebaixada não existisse, barulho. Estou arrependida e pensando em me mudar. O bairro foi ótimo. Está péssimo".
Outro constatava com tristeza:
"Este prédio foi um transtorno. Teve muita briga entre a construtora e os moradores vizinhos, porque eles trabalhavam dia e noite. E caía pedaços de madeira aqui em casa. Foi um inferno. Depois que ficou pronto, tirou o sol da frente de casa e a rede de esgoto não deu conta. Arrebentou tudo, com a sujeira invadindo toda a minha sala. Eles me tomaram o sol e agora não tem mais jeito".
O autor de "A produção da arquitetura de especulação imobiliária" observa que o caráter caótico das construções altera todo o equilíbrio existente e aniquila as condições anteriores à construção:
"Tenta-se iludir (ou ilude-se) os novos moradores com ofertas não mais existentes e com 'compensações ao nível do projeto'. A densidade populacional cresce bruscamente, tornando de imediato 'insuficiente os serviços e os equipamentos disponíveis', o que vai implicar a médio prazo 'em transformações que deteriorarão a própria área urbana".
"Os 20 centímetros de terra que cobrem as lajes dos subsolos", segundo o autor, "pouco tem a ver com os jardins arborizados e os quintais que rodeavam as casas térreas".
Enquanto as novas construções destruíam bairros residenciais em São Paulo, durante os anos 1970, 80, 90, 2000, a mídia emudecia. Eram raras as reportagens sobre a perda de qualidade de vida, as constantes mudanças na lei de zoneamento, que permitiam construir tudo em qualquer lugar. Fechavam-se os olhos para a ganância das construtoras. Era um procedimento normal, "porque as pessoas não vão ter onde morar".
O pior é que não há mais retorno. São Paulo transformou-se em uma cidade inabitável. Feia. Suja. Tomada pela criminalidade. Os prédios residenciais têm nomes franceses, italianos, ingleses, que não conseguem esconder a feiura arquitetônica. Mais do que a feiura: são a prova de como o arquiteto dobrou sua espinha para fazer uma construção sem qualquer atrativo. É mais um prédio sem personalidade em uma cidade sufocada pelas obras que não param nunca.
E a mídia agora despertou para o problema (veja links abaixo). Hoje mesmo, no telejornal "Bom dia SP", uma extensa reportagem mostrava como os bairros residenciais estão sucumbindo à interminável construção de novos empreendimentos.
Mais, mais, mais e mais... até que haja, talvez, alguma explosão salvadora ou um cataclisma que faça a cidade afundar até o fundo do Inferno.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/02/verticalizacao-cerca-casas-em-bairros-de-sao-paulo.html
https://caosplanejado.com/cidades-brasileiras-a-pior-verticalizacao-do-mundo/
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/02/130213_casas_cercadas_sp_fn