domingo, 13 de fevereiro de 2022

Adeus à Granja

 

    Foto extraída do site saopauloinfoco.com.br/historia-granja-viana


As indicações eram temerárias. Meu orientador - Ciro Marcondes Filho - tinha avisado: "Dificilmente, você vai encontrar a minha casa. É muito complicado chegar lá". 

Lembro que saí da rodovia Raposo Tavares, na altura do quilômetro 23,8 e entrei em uma avenida silenciosa e vazia. Era como estar na avenida Paulista, com os carros zunindo em volta, e passar por um portal mágico e entrar numa estrada interiorana, vazia e parecendo abandonada. 

Ao sair da rodovia barulhenta e caótica, entrei na avenida São Camilo. Era só seguir reto e chegar em condomínio chamado Fazendinha. Deveria passar por um portão, com acesso controlado, e entrar por um emaranhado de ruas pequenas e particulares até chegar na rua Cambuquira, onde Ciro morava.

Ele tinha de assinar uns papéis, para eu concorrer a uma bolsa-sanduíche, oferecida por um organismo de pesquisa. 

Entrei e saí, me perdi, até encontrar a casa do Ciro. Ele pareceu não acreditar que eu tinha conseguido localizar seu endereço, mas assinou a papelada, que meses mais tarde representariam minha passagem para Paris. Na época, não havia Waze, GPS. A gente parava em um bar, ou pedia indicação para um pedestre, ou ainda usava um guia de ruas, quase sempre desatualizado.

A Fazendinha era um condomínio com poucas casas, tranquilo, quase idílico. Descobri que fazia parte de uma região chamada Granja Viana, verdejante, pouco habitada. Quase uma cidadezinha do interior a poucos 24 quilômetros da avenida Francisco Morato, no Butantã. 

Em casa, falei para a família: se eu ganhar a bolsa, na volta, vamos morar na Granja Viana. É um lugar delicioso. Tranquilo. Sossegado. Um paraíso.

Demorou quatro anos para o sonho se realizar. Voltamos de Paris. Defendi a tese de doutorado. Arrumei emprego em um jornal. Tive um livro publicado. Foi por acaso: um colega de trabalho, Delmar Marques, tinha se separado e precisava vender urgentemente sua casa. Ele morava na Granja, ao lado da Fazendinha. Quando ele disse que morava na Granja, acendeu uma luz dentro da minha cabeça. Fomos ver a casa dele e fechamos o negócio.

Falando assim parece que foi fácil, mas não foi. A advogada da ex-mulher do Delmar achava que fazíamos parte de um complô qualquer e dificultava o fechamento do negócio. Em desespero, sabendo que ia perder a oportunidade, liguei para a mãe da ex-mulher dele, uma senhora simples, que morava no interior de Minas Gerais (a ex-mulher tinha se mudado para os Estados Unidos). 

Falei: senhora, estou querendo comprar a casa que era da sua filha e a advogada dela só complica a situação. A sra. poderia nos ajudar, por favor?

No dia seguinte, a advogada me ligou e não me tratou com civilidade forense. Ao contrário, reclamou de falta de ética, disse que fui desrespeitoso ao passar por cima de sua autoridade, enfim, eu ficava ouvindo e contando "um, dois, três, quatro..." aguardando pela capitulação, que finalmente veio ao final da descompostura:

Tudo bem, vamos vender a casa, ela cuspiu no aparelho, com indignação de rábula ultrajada. 

A casa ficava enfiada em uma mata. Muitas árvores majestosas em volta. Cheiro de planta. Mesmo no calor, a construção era fresca. 

Sonhos realizados podem virar pesadelos contínuos? 

No meu caso, virou um pesadelo daqueles que a gente demora para acordar. 

A vizinhança era barulhenta. Quando eu digo barulhenta, me refiro a dois irmãos maconheiros que ouviam música em volume mais do que insuportável, enlouquecedor, eu diria. Eles faziam festas que varavam a madrugada. Era como se eles estivessem sozinhos no mundo. Sem qualquer respeito ou civilidade pelo vizinho. 

O sujeito que morava na frente de casa punha músicas dos anos 1960, 1970 e 1980, para embalar o almoço que seria servido no jardim, sempre aos domingos. 

Uma vizinha, que morava ao lado da minha casa, uma noite, me acordou fazendo karaokê com amigos. Era uma terça-feira, quarta-feira, não me recordo. Um pouco mais abaixo, na mesma rua, onde eu morava, um adolescente aprendia tocar bateria.

Um vizinho, que veio morar nesta mesma casa, ergueu uma espécie de laje, coberta para fazer churrasco e ficava com seus amigos sem camisa e suados olhando para dentro da minha casa. Fui obrigado a erguer o muro, subindo uns quatro metros para não vê-lo.

Quem era essa gente? De que planeta eles tinham saído?

A situação não melhorou com o tempo. Foi só piorando. As árvores majestosas que ficavam em volta de casa foram sendo derrubadas. Uma a uma. Impiedosamente. A gente ligava para os órgãos de controle (Polícia Florestal) e nada era efetivamente feito. 

Atrás de casa, surgiu uma moradia. Para não ver a construção, plantei meia dúzia de ficus. Eles cresceram rapidamente e taparam o imóvel recém-construído. A nova vizinha apareceu em casa e me mandou cortar as árvores, porque caíam folhas em seu quintal ou ela não conseguiu sintonizar o satélite. Sei lá. Algo nessa linha argumentativa. Expliquei para ela que não iria fazer o que ela estava me pedindo, porque o objetivo das árvores era muito simples: eu não queria ver a casa dela e, por tabela, não gostaria de vê-la, tomando banho, se trocando, tossindo.

Descobri que o pior lugar do mundo para alguém que gosta de natureza morar era a Granja Viana. Todo dia, uma árvore era derrubada. 

Depois que as árvores morriam, vinha uma sequência de horrores. Casas eram erguidas com o barulho previsível: bate estacas, marteladas, serras, gritos dos operários, caminhões que chegavam com cimentos, tijolos. E árvores vinham pra baixo. Caíam sem parar.

Lembro quando o condomínio Alphaville da Granja começou a ser construído a gente dormia ao som de motosserras e o barulho, aquele silvo que o tronco faz com o deslocamento de ar, vindo de encontro ao chão, se estatelando, morrendo repentinamente. 

Nessa época, estava chegando em casa, quando os faróis do meu carro focalizaram um pobre saruê, perdido, desalojado, caminhando sem rumo. Saí do carro. Ele olhou para mim, de um jeito tão desesperado, tão desconsolado, que não consegui dormir à noite. Era como se ele me dissesse: o que vocês fizeram com a minha casa? Para onde eu vou agora? Cadê os meus amigos? A minha mulher, meus filhos?

Um dia, chego em casa e minha mulher me avisa que estão cortando as árvores no terreno vizinho. Chamamos a Polícia Florestal e quando o veículo chegou fomos até lá. 

O policial perguntou para o homem, que segurava a motosserra: o sr. tem autorização para cortar as árvores.

Tenho, sim senhor, respondeu o homem da motosserra, e estendeu um papel para o policial.

O policial leu e disse: Aqui diz que o sr. tem autorização para cortar três árvores, mas outras vinte foram cortadas.

O homem da motosserra explicou: Então, eu cortei três, não sei quem cortou as outras dezessete.

O policial deu o caso por encerrado e foi embora. Minha mulher foi ameaçada de morte pelo invasor e fizemos um BO, que seria o primeiro de uma longa e interminável série de BOs inúteis.

Esse novo "vizinho", descobrimos depois, era um grileiro, invasor. O terreno pertencia a uma senhora inglesa, que ficou anos sem pagar o IPTU. Possivelmente, alguém na Prefeitura de Carapicuíba sabia que o terreno estava vago e fez a negociação por fora.

É claro que fomos atrás, em busca de Justiça. Uma promotora do Meio Ambiente disse que não poderia nos ajudar: Gente, o Brasil inteiro foi feito assim, na base da grilagem. Deixa pra lá. 

Fomos atrás de um outro promotor, acho que era da Ação Civil Pública, não me recordo. Esse foi em frente e descobriu que o terreno grilado havia sido comprado com documentos falsos.

Resumo da ópera: ninguém foi preso. O grileiro invasor continua lá. Não é incomodado pelos órgãos competentes, nem pela associação de moradores. E ele gosta de ouvir funk no último volume. Reúne os "bons companheiros" para encontros noturnos, com moças de fino trato ostentando vestidos curtos e brilhantes. É uma festa permanente. São pessoas felizes, que têm muito a comemorar todos os dias.

Esse grileiro fez coisa do arco da velha, para usar uma expressão nova. Chegou a passar trator na rua e erguer uma espécie de paredão de barro, fechando a via. E lá vem prefeitura, e lá vamos nós reclamar, corre de um lado, corre de outro, até a prefeitura aparecer com um trator para remover o paredão e refazer a rua "interditada". Uma bagunça.

Começaram os assaltos. Os criminosos entravam na vila, que não possuía entrada controlada, e faziam reféns. Roubavam casas. Ameaçavam crianças. A situação chegou a tal ponto que um grupo de moradores decidiu se reunir e buscar solução para o problema.

Fui participar de uma reunião e saí sem esperança. O pessoal conversava um pouco e passava o resto do tempo tomando vinho e comendo queijo. Era uma reunião gourmet (termo da moda, não pode ficar de fora).

Em um novo encontro, a moça que presidia a reunião disse que não queria mais saber de nada. Ela estava com "o saco cheio" de ir atrás das pessoas para tentar montar uma associação e ninguém queria saber de nada. 

Quem quer ficar com esse abacaxi? - ela perguntou.

Sobrou pra mim. Eu tinha participado de outras lutas, quase tão inglórias como aquela, e o meu currículo era favorável, modéstia às favas. 

Começamos a nos reunir semanalmente - sem distribuição de queijo e vinho. A associação de moradores foi criada e, em seguida, conseguimos aprovar na prefeitura a criação de um bolsão, que permitia fechar a vila e criar uma entrada com a presença de seguranças. Nesse período, a participação de Malu Rocha Leão foi fundamental. Ela cedeu a casa dela para algumas reuniões, percorreu as ruas em busca de futuros associados, nunca perdeu a esperança de conseguir montar a associação. Infelizmente, morreu recentemente, muito jovem, deixando muitas saudades e lembranças positivas.

Em 2011, tínhamos um saldo de dez ocorrências de roubo à mão armada. Dois anos depois, com a criação da associação e a presença das guaritas na entrada, o saldo caiu para zero ocorrência.

Para manter a segurança, era preciso que os moradores contribuíssem com uma quantia mensal. Quem pudesse pagar, pagava; quem não pudesse, pagaria quando fosse possível. O importante era ter um pouco de paz no lugar.

Fui presidente da associação de moradores por dois anos (2013 a 2015), durante os quais conseguimos efetivar a associação propriamente dita e criar o bolsão, fechando o condomínio. Minha casa era usada como sede da associação. Fazíamos reuniões. Trabalhávamos até altas horas. Depois desse período, deixei o cargo, porque estava com sérios problemas e não teria cabeça para continuar à frente da associação. 

Acabei vendendo a casa da Granja. Fui morar em São Paulo. Um belo dia, bate na porta um oficial de Justiça. Descobrimos que eu e a minha mulher estávamos sendo processados pela associação de moradores por não pagamento de mensalidades.

Você já levou um tapa na cara? Se levou, sabe exatamente como eu me senti naquela hora.

Enfim, dei adeus à Granja. Meu sonho virou um pesadelo daqueles bem ruins de se ter de madrugada. Espero nunca mais voltar para lá e tenho pena daquele sonhador que hoje está enfiando seus recursos em um lugar que é vendido como idílico, mas na realidade é mais um bairro periférico de São Paulo.

Viver na Granja, hoje, é muito complicado. O trânsito impede o morador de ir e vir. As estradas que dão acesso - Raposo Tavares e Castello Branco - estão sempre travadas. Para piorar a situação, a passa pela entrada da Granja, quilômetro 23,8 (por onde entrei naquela tarde memorável), o conturbado Rodoanel. Praticamente, toda semana um caminhoneiro se mata ou se arrebenta no Rodoanel paralisando o tráfego por horas a fio. A pobre avenida São Camilo é intrafegável. 

Fui em busca de qualidade de vida e acabei entrando em uma guerra de BOs, processos, idas e vindas à morosa e omissa prefeitura, idas e vindas ao fórum (sem qualquer resultado prático). Algo que desejaria, sim, ao meu pior inimigo. 

Um grande abraço.    

     

 

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