segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

No Código de Trânsito dos Motociclistas, vale tudo

 


Em São Paulo, existe um Código de Trânsito Brasileiro dos Motociclistas. Tem pouca relação (ou nenhuma relação) com a Lei 14.071, de 13 de outubro de 2020 e também com a Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, que instituem normas de circulação de veículos.

O Código de Trânsito Brasileiro para Motociclistas é específico. Não está escrito (nem desenhado) em lugar nenhum. Mas apenas os motociclistas o conhecem. 

O semáforo, por exemplo, tanto faz estar no vermelho, verde ou amarelo. Quando houver um semáforo, significa que o motociclista pode passar. 

"Mesmo no vermelho?", uma pessoa mais ingênua pode questionar.

"Principalmente, no vermelho", dirá o motociclista.  

Nas ultrapassagens, o Artigo 29, inciso 9 do Código de Trânsito Brasileiro diz o seguinte: "A ultrapassagem de outro veículo em movimento deverá ser feita pela esquerda, obedecida a sinalização regulamentar e as demais normas estabelecidas neste Código".

Já o Código Brasileiro de Trânsito dos Motociclistas, que não está escrito, vai dizer o seguinte: "Ultrapasse pela direita, pela esquerda, pelo meio dos carros, pelo acostamento, por onde você puder. E não precisa sinalizar". É um código liberal. Permite muita coisa.

Em geral, as ruas da cidade tem mão e contramão. Setas indicam quando a rua é mão e quando é contramão. Para os motociclistas, toda rua é mão. Aquelas setas que indicam que você não pode entrar com seu carro naquele sentido são desnecessárias. Se você estiver em uma moto, aprenda: não tem contramão. É tudo mão. Tem outra: pode ir na direção do carro, em rota suicida, que ele vai desviar. 

Sabe aqueles radares de velocidade?

Pois é, não funcionam para motocicletas. Os radares, coitados, foram concebidos para veículos de quatro rodas. Veículos de duas rodas podem acelerar a vontade. O radar nunca vai flagrá-los na velocidade acima da permitida.

Assim, o Código Brasileiro de Trânsito dos Motociclistas permite trafegar em qualquer velocidade. Quer ir a 20 km/h? Pode. Quer correr a 120 km/h em uma via onde a velocidade permitida é 50 km/h? Pode. Ande voando pelas ruas. Faça o que lhe der na telha. Nenhum radar vai multá-lo. Os radares não existem para motocicletas.

O código particular dos motociclistas também permite outras liberalidades. No caso daquele motorista que mudou de faixa, está permitido ao motociclista puni-lo exemplarmente, dando pontapés na porta do carro e também destruindo o espelho retrovisor. 

Um site especializado em Justiça informa que "de acordo com as leis de trânsito brasileiras, as motos são obrigadas a obedecer às mesmas leis designadas para os carros. Portanto, andar no corredor de trânsito, sem garantir a segurança completa, é uma violação da legislação". Na prática, não é isso que acontece. O motociclista pode andar em ziguezague, pode acelerar o quanto quiser no corredor de trânsito, pode tudo.

O Código Brasileiro de Trânsito limita o uso de buzina. Especifica que a buzina deve ser usada "de forma breve, apenas para alertar outros usuários da via". O código dos motociclistas diz outra coisa: "Buzine o quanto quiser, a hora que quiser, vá acelerando e buzinando".

As autoridades municipais desistiram de fazer valer apenas o Código de Trânsito Brasileiro. Por omissão, elas permitem o Código Brasileiro de Motociclistas, que ainda não foi escrito, mas vigora peremptoriamente. 

As motos usam a faixa de pedestres como estacionamento. Se você é velho e andar tropegamente, ouvirá a moto sendo acelerada, os giros subindo num sinal de alerta de que será atropelado nos próximos segundos.

As calçadas também fazem parte das ruas e avenidas. As motos circulam à vontade pelas calçadas, arrepiando as jovens mamães que passeavam supostamente tranquilas com seus carrinhos de bebê de baixíssima velocidade. 

No passado, houve tentativas para enquadrar os motociclistas, dentro dos limites do código oficial, mas fracassaram. O resultado desse "deixa pra lá" é o cenário da burrice extrema. Cerca de 42% das mortes no trânsito são de motociclistas. Todo dia morre ou fica gravemente ferido um motociclista em São Paulo. Nos acidentes, eles perdem pernas, braços, mãos, pés. Ficam quebrados, andando com muletas e parafusos enfiados nos membros. Passam por longa recuperação. Quem paga o tratamento somos nós, os pagadores de impostos. Em dez anos, o SUS gastou 3 bilhões de reais com acidentados no trânsito. Muitos deles, motociclistas. 

No cenário da burrice extrema, o motociclista vem em alta velocidade no corredor de trânsito. Nenhuma autoridade vai freá-lo, vai impedir que ele continue fazendo bobagem. Vale a omissão da autoridade de trânsito, que verá o motociclista se esborrachar mais adiante na porta de um carro, na traseira do ônibus, no para-choque do caminhão. Eles se chocam contra tudo que se move, inclusive outras motocicletas. Contra o que está parado: árvores, postes, muros.

"Isso ocorre eventualmente", dirá o otimista crédulo.

Não. Acontece todos os dias. Agora mesmo, enquanto você está lendo esta postagem. Nesse minuto, um motociclista está sofrendo um acidente. Ele vai morrer no meio do trânsito ou vai precisar ser removido com urgência para um hospital. 

O que acontece em seguida é um pandemônio citadino e caótico. Carros e motos do departamento de trânsito vão interromper a avenida, marginal, rua, seja lá onde for que tiver acontecido a desgraça. O trânsito vai ficar paralisado. Quem estava contando em chegar no trabalho, na escola, em seu destino, pode esquecer. Vai ficar estacionado por muito tempo, aguardando a chegada de um helicóptero que vai aterrissar no meio da avenida para colocar o moribundo em uma maca e levá-lo ao hospital mais próximo. É um ritual que poderia ser evitado, mas tem de ser repetido diariamente, como parte da burrice institucional vigente. 

O telejornal matutino vai acionar a reportagem que está em outro helicóptero. As imagens vão mostrar o trânsito paralisado. A motocicleta acidentada, tombada no asfalto, enquanto a equipe de salvamento coloca o ferido na maca. 

"Acidente com moto e carro interrompe o trânsito..."

"Acidente com moto e caminhão paralisa a avenida..."

E amanhã vai acontecer tudo de novo.       


  


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