quarta-feira, 3 de junho de 2020
Meu nome é Isaac dos Santos
Não sei quanto as grandes redes de loja gastam com empresas de cobrança. Ao que tudo indica, é muito dinheiro jogado no lixo. Os dados das empresas de cobrança são ultrapassados. Não condizem com a realidade. Falo isso por experiência própria. De manhã, à tarde e à noite - inclusive sábados, domingos e feriados - as assessorias de cobrança ligam aqui em casa e pedem para falar com Isaac dos Santos.
Que eu saiba, em 15 anos de existência, o meu número de telefone nunca foi de Isaac dos Santos. Que eu saiba também ele nunca morou aqui em casa. Talvez possa estar enganado. Vou até descer ao quintal, para verificar. Pode ser que haja um Isaac dos Santos vivendo sob o tanque de lavar roupa.
O telefone toca. O trouxa (eu) atendo e uma voz robótica diz:
"Alô".
Respondo: "Alô".
Pronto. As portas do Inferno se abrem.
"Bom dia, gostaria de falar com o sr. Isaac dos Santos..."
"Bom dia. Aqui nunca morou uma pessoa chamada Isaac dos Santos. A sra. poderia tirá-lo desta relação, por favor. Sua informação está errada."
"Não é Isaac dos Santos...Se você não é Isaac dos Santos, diga não..."
Não era uma pessoa. Era uma máquina que falava comigo. Pior: uma máquina burra.
À tarde, a história se repete. À noite, idem. No dia seguinte, será a mesma ladainha.
Os operadores de telemarketing da cobrança correm em busca de Isaac dos Santos. E eu não posso atendê-los. Isso me deixa, estranhamente, desconfortável. Queria ser Isaac dos Santos. Gostaria de ser essa pessoa, só para responder com convicção, com força e determinação: "Sim, sou eu. Isaac dos Santos..."
Às vezes, de madrugada, fico imaginando como será esse Isaac dos Santos... Gordinho e careca? Cachaceiro? Porte atlético, loiro e 1m90 de músculos?
Não sei por que, mas imagino um Isaac dos Santos moreno, bronzeado, com barriga ligeiramente saliente (não gordo), cabelo ralo e sem barba. Também acho que não tenha tatuagem. Não acredito que Isaac dos Santos tenha tatuado o braço, nem a perna. Ele deve tomar cerveja em dias de calor. Gosta de praia e de caipirinha. É aquele cara que adora um camarão praiano na brasa. Não acho que ele torça para algum time grande, como Corinthians ou Palmeiras. Sinto que seu time do coração seja uma equipe pequena, como o Água Santa de Diadema ou o Azulão de São Caetano.
Deve ser divorciado e casado de novo, com uma moça mais nova, com quem teve dois filhos. Ele deve pagar pensão para a primeira mulher. Vive de aluguel em uma bairro de ruas íngremes e casas amontoadas. Quanto será a dívida de Isaac dos Santos? O que será que ele comprou e não pagou?
Então, o telefone toca e eu atendo:
"O sr. Isaac dos Santos, por favor..."
Nessa hora, decido tomar uma atitude. É atitude dessas de filme, em que o roteiro muda de repente. O detetive que investigava o crime, na verdade, era o próprio criminoso.
Pronto, é assim que se faz.
Fui ao cartório e mandei o cartorário registrar meu novo nome:
"Isaac dos Santos".
Fui para casa, feliz da vida, com o novo registro de nascimento em mãos. Agora, eu não era mais eu. Era Isaac dos Santos, recém-nascido
Aguardei ansiosamente a ligação. Roía as unhas de nervoso. Não via a hora de atender o aparelho e dizer com voz de tenor:
"Bom dia, sim, sou Isaac dos Santos. Em que posso ajudá-la?"
Para o meu desespero, o telefone não tocava. Passou uma semana, duas...Era uma espera angustiante.
Então, uma manhã de outono ensolarada, finalmente, toca o telefone. Corro para atender.
"Alô..." - diz a moça robótica do telemarketing de cobrança.
"Quer falar com Isaac dos Santos? Sou eu mesmo."
"Não, senhor. Gostaria de falar com a dona Glória..."
Desliguei o telefone, sabendo que minha próxima atitude radical seria muito mais complicada.
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