quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
Por trás do ódio, uma grande reportagem
"Ela queria dar o furo. Ela queria dar o furo", disse o presidente Jair Bolsonaro, enquanto as pessoas em volta riam, divertidas. "Ela", no caso, é a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Dez dias antes do segundo turno da eleição presidencial, Patrícia publicou a reportagem "Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp"
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml.
A matéria esclarecia que um grupo de empresários entrava de sola a favor do então candidato Jair Bolsonaro, disseminando fake news e atropelando a legislação eleitoral que proibia apoio financeiro de empresas a candidatos.
Os contratos das empresas, participantes do lobby pró-capitão, chegavam até a 12 milhões de reais. Entre os empresários que tinham aderido à metralhadora digital, estava o senhor Luciano Hang, proprietário das lojas Havan, aquela rede que usa réplicas gigantes da Estátua da Liberdade, numa clara apologia ao cafona.
O furo de reportagem não impediu a vitória de Bolsonaro, nem sua candidatura foi anulada pela Justiça Eleitoral. Livre, leve e solto, Bolsonaro conquistou 56 milhões de votos e chegou à Presidência da República.
Esse foi o furo que ainda hoje provoca a ira da clã Bolsonaro. A repórter mostrou com fatos e evidências que a lei eleitoral foi desrespeitada. Portanto, o presidente deveria ter sua candidatura cassada.
Hoje, no jogo de duplo sentido, o presidente provoca risos ao sugerir que "furo" seja, talvez, vagina. A repórter queria "dar o furo", ou seja, a vagina...Ao redor, as pessoas caem na gargalhada. É a cultura do botequim, da cafajestada, do baixo nível, da pobreza intelectual deprimente.
Na prática, o presidente está se referindo ao depoimento de Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens. Terça-feira passada, dia 11, ele disse na CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que Patrícia, quando fazia o levantamento para a reportagem, insinuou-se sexualmente. "Queria dar o furo".
Pacientemente, a repórter exibiu cópias de conversas, mantidas entre ela e Hans River, em que ficava claro que o rapaz afrobrasileiro de nome anglogermânico é que a havia assediado.
Em 2018, Hans estava em litígio com a empresa disparadora de mensagens e passou para a Folha informações confidenciais, que possibilitaram à repórter produzir a matéria que desmantelou o castelo digital bolsonarista.
Agora, graças à reportagem de Patrícia Campos Mello, a gente sabe que uma rede empresas - entre elas a Yacows - usou o nome e CPF de idosos, nascidos a partir de 1953 (olha eu aí gente!!), para registrar chips de celulares e promover o disparo de mensagens em benefício de determinados políticos, entre eles Jair Bolsonaro.
O incômodo constrangedor espalha-se como fedor de bode. Sob o coro de "fascista", o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi à tribuna e mandou as deputadas de partidos rivais a "raspar o sovaco, senão dá um mau cheiro do caramba".
Sua excelência também publicou no Twitter declaração antiga da jornalista, comentando que havia votado no PT. No vídeo em questão Patrícia aconselha jornalistas a jamais comentarem sua intenção de voto. Ela relembra que, em 2013, concedeu entrevista a alunos da PUC e disse ser eleitora do PT. A edição cortou explicações complementares. "E eu virei a putinha do PT", dizia. Veja a publicação:
https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1229771901649801218
Entenda como funciona a lógica bolsonarista. Eles nunca assumem a posição de réus. São sempre acusadores. Acusam sempre. A todo momento. "Fulano é comunista". "Fulana quer dar o furo". "Veja a ideologia dela".
O que os eleitores brasileiros querem saber é muito simples: a série de reportagens da repórter Patrícia Campos Mello provou que a eleição de Bolsonaro teve o apoio de empresas que pagaram os tubos para alavancar a candidatura do PSL à Presidência. Essa prática foi ilegal. Contrariou a Legislação Eleitoral. A CPMI vai comprovar isso? Se comprovar, Bolsonaro será afastado? Há elementos para impeachment?
Sinceramente, tinha certeza que o governo Bolsonaro seria um pesadelo, mas nunca imaginei que fosse um pesadelo diário, com ataques diários, com crises a cada 24 horas. Não vejo a hora desse horror terminar. O problema é que, na última vez que tive essa mesma sensação, o pesadelo durou 21 anos.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Desculpe, Fernando Meirelles, mas Democracia em vertigem é melhor que Honeyland
Em entrevista ao Roda Viva, o cineasta Fernando
Meirelles (Cidade de Deus e Dois Papas) disse que o documentário Honeyland é
favorito ao Oscar. Honeyland seria o "grande filme", enquanto o
representante brasileiro Democracia em vertigem, da cineasta Petra Costa,
não estaria no mesmo patamar.
Honeyland, dirigido por Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, conta a história da apicultora Hatidze Muratova, que vive em uma zona remota da Macedônia, país enfiado entre a Bulgária, Kosovo, Sérvia e Grécia, sem saída para o mar. Hatidze cuida da mãe doente. Tem uma existência solitária, cuidando de suas abelhas e produzindo mel que vai vender na capital Escópia.
Para realizar Honeyland foram necessárias 400 horas de filmagem, que se arrastaram por três anos. O documentário mostra como a chegada de vizinhos - pai, mãe e uma penca de filhos de todas as idades - vai bagunçar a vida de Hatidze.
Os novos vizinhos têm um rebanho de vacas e decidem investir na apicultura. O resultado é ecologicamente desastroso. As crianças - obrigadas a trabalhar - viram "pasto" para as abelhas. Eles são picados, inchados e revoltam-se contra os pais, no caso seus "patrões".
Outras cenas mostram o nascimento de um novilho, arrancado do ventre da vaca por uma criança, que parece ter muito nojo do que está fazendo. São mostradas festas, reuniões locais e a ida de Hatidze à cidade para vender seu mel.
Honeyland é um filme local. Trabalha na metáfora do frágil equilíbrio ambiental e como os seres humanos são especialistas em dizimar a natureza. Os "atores" são pessoas reais. Não há falas decoradas, nem texto a ser seguido. O filme retrata uma vida miserável de pessoas muito pobres e excluídas.
Honeyland é um excelente documentário. Mas, peço desculpas a Fernando Meirelles, é menor, em comparação a Democracia em vertigem.
O filme de Petra Costa não se resume a uma localidade, a um personagem, é amplo, macro. Discute o golpe de direita que derrubou uma presidente eleita. Democracia em vertigem foi selecionado pelo "comunista" The New York Times como um dos melhores filmes do ano.
Petra Costa, 36 anos, adiciona ao documentário as contradições de sua vida. Ela é neta de um dos fundadores da construtora multinacional Andrade Gutierrez (empresa condenada por corrupção) e filha de pais guerrilheiros, presos e exilados, durante a Ditadura Militar.
Cai Dilma, entra Michel Temer e chega o capitão
autoritário, favorável ao armamentismo, aos agrotóxicos, inimigo número 1 dos
LGBTs, das reservas indígenas e dos quilombolas.
Com voz de alguém que sente muita dor, Petra
encadeia as desgraças da política brasileira, esse buraco sem fundo em que nos
encontramos.
Ontem, dando uma banana para o artigo 37 da Constituição, a Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência) usou o dinheiro público para atacar a cineastra Petra e seu documentário. Chamando criadora e criatura de "anti-Brasil".
O artigo 37 fala que o governo deve ter "impessoalidade". Não foi o caso da Secom, comandada por Fabio Wajngarten, investigado pela Polícia Federal por "peculato e corrupção passiva".
No The Guardian, edição de hoje, um articulista menciona que, geralmente, governantes ficam felizes quando uma obra artística, que representa seus países, ganha uma honraria internacional. Não foi o caso do governo Bolsonaro em relação à Democracia em vertigem, menciona o jornal inglês.
Para defender Petra Costa e sua obra, Caetano Veloso e Chico Buarque divulgaram vídeos, falando da importância do filme, disponível pela Netflix. No campo adversário, um enciumado Pedro Bial, que perdeu dez anos de sua longa existência apresentando aquela porcaria de bês ao cubo, disse que Petra é "uma menina querendo dizer para a mamãe dela que fez tudo certinho".
Estamos nesse cabo de guerra. Para os defensores do governo Bolsonaro, Democracia em vertigem é o inimigo da vez e deve ser ferozmente combatido. Já os 89 milhões, que não votaram no capitão, irão torcer pelo representante brasileiro no Oscar.
De minha parte, gostaria que Democracia em vertigem levasse a estatueta. Entre outros motivos, porque é um documentário excepcional e representa um soco bem dado no fígado de bolsominions e companhia bela.
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